domingo, 3 de junho de 2012

Eu queria ser Poeta!

Eu queria ser Poeta!
Amar as coisas e a vida!
Ser estrela, ser profeta,
Ser luz de sabedoria!

Eu queria ser Poeta!
Amar as coisas e a vida!
Asa livre de borboleta!
Janela azul de maresia!

Eu queria ser Poeta!
Criança, em qualquer idade!
Em lábios azuis,  inocente,
Beijar a flor,  a sinceridade!

Eu queria ser Poeta!
Adolescente, hoje e sempre!
Voo de asa livre de rasgo!
Pássaro azul de entusiasmo!

Eu queria ser Poeta!
Sério  e  avisado adulto
Sem troca de moeda
Ser luz de todo o mundo!


Eu queria ser Poeta!
Amar as coisas e a vida!
Ser palavra de profeta,
Ser chão de poesia!



Arinda   Andrés, Eu queria ser Poeta!

Tia Maria da Natividade

                 
A Tia Maria da Natividade, de cantarinha de barro empoleirada no alto da cabeça, ou enfiada no braço, não era muito alta, mas a sua figura de mulher ágil, a cara miudinha, numa cabeça apertada num piruco, emoldurada em meigo e claro olhar, a boca de lábios finos, aberta em palavras de generosidade e alegria, faziam dela uma grande pessoa, diferente das outras, daí eu, imaginá-la, sempre, como alta e grande mulher!
Ocupava-se das ovelhas, do queijo e do leite, os mais apreciados entre todos os da aldeia, enchendo de brios de trabalho e fartura as tábuas de coalhadas brancas enluaradas, a secar em casca de manteiga apimentada e as francelas a escorrer de soro e de tenros requeijões, numa terra de rebanhos e de pastores. Estava casada com o João Borregão, um homem sem pressas, sempre com um sorriso arreganhado no rosto redondo de bondade e de satisfação; nascido e criado entre as ovelhas, e a liberdade dos montes, e recebido, da sua companhia, a paz e a bondade dos borregos, era um incansável protector e apaziguador em quezílias de pastores, para dividir alguma leira ou pedaço de lameiro, pago a bom preço; era sempre tido e achado em tempo de tomar decisões acertadas e pacificadoras; para ele estava tudo bem, e para as suas ovelhas, qualquer nesga de carvalha, ou folhareca de rebentação, tenra e viçosa, chegavam; tinha que aturar os que assim não pensavam, mas tido como respeitado e respeitador, não lhe era difícil acalmar ânimos de pequenas rixas.
Viviam assim uma vida simples, sem grandes canseiras e cuidados, ocupando-se apenas do pequeno rebanho e dos animais, em plena serra, numa casinha simples e modesta, onde o galo cantava e a terra florescia em fartas sementeiras e abençoadas colheitas.
A esse tempo, um rico comerciante, levado pela ganância, e para conseguir bons lucros, mandou comprar e cercar os melhores pastos da sua terra e das redondezas, limitando ao poder e à ostentação as suas ovelhas e pastores. Toda a gente, surpreendida por tanta ambição, ficou pasmada perante o acto, de tão desmedido que era, mas ninguém disse nada, de susto e de receios! Entretanto, a Tia Maria da Natividade e o João Borregão viviam o seu dia-a-dia, felizes e contentes, longe do povoado, na serra, vendo correr a águas nos ribeiros e ouvindo o cantar dos passarinhos, contentando-se com o que Deus lhe deu.
Uma cantarinha de barro, oferecida por seu pai, o velho oleiro, era um dos preciosos bens da Tia Maria da Natividade; passou-lhe naquele utensílio rude e vulgar, tão perfeito na forma como no fim a que se destinava, todo o amor à terra e às coisas que dela naturalmente brotavam; e a tia Maria da Natividade sempre pensou que tinha, com aquela dádiva, recebido a obrigação de lhe dar uso e proveito, e fosse para onde fosse, tinha que se fazer acompanhar daquela cantarinha; já as outras mulheres andavam cansadas e estafadas de tanta água acarretar, e ela, calmamente, ao passar por esta ou por aquela fonte, trazia, de imediato, aquilo que precisava, mas também, se se deparava com alguém, em tempos de calor abrasivo, de imediato se prontificava a dar de beber a quem tinha sede, aproveitando, também, para trocar alguma palavra amiga, sem as gastar desnecessariamente, nunca se esquecendo de dar uso ao precioso presente e do que para ela significava. E os garotos que lhe andavam por perto, diziam, e da boca das crianças é que sai a verdade, e diziam todos eles, que a água da cantarinha da Ti Maria, era muito boa, sabia muito bem! «A água da Ti Maria é que é boa! Até cura as maleitas dos raparigos! É! Porque vai- a buscar a Sant´Oplinairo! Anda que nem uma barboreta! E tudo o que faz, pode-se ver!
Era uma manhã bonita e serena! O céu estava azul e os passarinhos, em alegres chilreios, cruzavam os ares em esfusiante algaraviada, a derramar-se em trinados de alegria e contemplação, e a tia Maria da Natividade, qual Primavera florida, de blusa enfeitada e chapéu na cabeça, apertado debaixo do queixo, vinha para casa, a cavalo em seu manso e humilde burriquito ali na aldeia, onde o queijeiro se desfazia em apuros de palavreado para levar os rendimentos dos rebanhos, ao melhor preço que lhe conviesse, e as mulheres, de mãos debaixo dos braços, afastaram-se de imediato, cochichando de curiosidade ou para tomar o pulso à questão; é que, vendo chegar a tia Maria da Natividade, recearam pelo seu afamado perfeccionismo.
Apenas preocupada consigo e com os seus, preparava-se para entrar em casa, onde a ordem e a limpeza varriam com serenidade e alegria, todos os contratempos e desentendimentos, mas o cheiro e a visão daquela angélica figura, com os seus queijos e requeijões a branquejar pelos buraquinhos de alva toalha de linho, atraíram a curiosidade de tão espertalhão negociante, que, também se preparou, de imediato, para ver e apreciar o trabalho daquela mulher, tão simples e arredada do seu mundo de dinheiro e ganância.
Era um homem poderoso e exigiu, de imediato, que todos os queijos lhe fossem confiscados, de tão apaixonado ficou por aquele precioso manjar; o povo estava pasmado e nem queria acreditar, a Tia Maria da Natividade, regressou a casa, triste e receosa pelo seu precioso trabalho; o tempo foi passando, e não havia novidades; até que um dia, o sábio negociante, determinou, a custo de muito dinheiro, que todo o queijo da Tia Maria lhe pertencesse, doravante!
Ficou triste e apoquentado o Ti João! E, vendo chegar a noite, desceu ao povoado, por entre as sombras das casas, pé aqui, pé ali, apalpando e tacteando, a fim de repor a justiça sobre aquela questão. E dirigiu-se a casa do rico comerciante, uma imponente construção, mas longe de tudo e de todos, isolada do mundo e da vida.
- Senhor, porque sois egoísta e malfeitor, apoderando-vos do que é dos outros? Os nossos queijos e as nossas coisas, são o nosso retrato, por isso o que é nosso, tratamo-lo com amor! O sabor dos nossos produtos deve-se à terra onde pastam, aos lameiros verdejantes, à água que corre nos ribeiros, ao sol que nos guia e ao luar que nos adormece! Nós e as nossas ovelhas, vivemos descansadamente, sem preocupações, apenas do que Deus nos dá!
Então o queijeiro, ganancioso, libertou as ovelhas, para gozarem, livremente das riquezas naturais das nossas terras! Ficando, deste modo, os rebanhos de Urros conhecidos por serem os melhores e mais apreciados, graças aos bons pastos de que se apascentavam, nas nossas terras!

Arinda Andrés
Retratos da minha infância

sábado, 2 de junho de 2012

A Tonica

     Ainda a alvorada, cinzenta e fria,  bem cerrada ao sol e à vida se escondia nos montes, e já a Tonica  trazia  as panelas  cheias de leite, ainda a cheirar à ordenha da manhã, misturada ao cheiro das urzes do monte e ao bafo dos borreguinhos.
      Tinha ido ao pasto, que as ovelhas e o Toninho, andavam em errância tão demorada, quanto os lameiros e os campos fartassem as ovelhas. Andava à vontade, que o Nero, o melhor cão que por ali havia, metia respeitinho! e medo! Olha que o lobo, dizem que já comeu e matou um ror deles…!
      Depois chegava a casa, a Tonica morava numa casa cheia de sonhos , arrumadinhos em cada púcaro, ardilosamente esfregado com areia, e muito pulso firme de trabalho e de vontade de ser alguém na vida; ao leite, já na caldeira, deitava-lhe o coalho para se transformar em coalhada. E ali estava, sobre as lajes da cozinha, tapada com um pano branco, mais branco que a neve, que a Tonica era muito limpa e prezada e  ninguém duvidava disso; a panela do leite estava  no  meio da cozinha; ao lado direito,  bem escarqueijado, o almário das panelas de ferro; todas alinhadas, numa cumplicidade estreita com a dona da casa e, mudas da atenção  a que estavam votadas, perscrutavam todos os movimentos daquele espaço tão pequenino ,mas tão aconchegante, dada a harmonia em que as coisa habitavam!  A sombra dos cântaros  de barro e de lata,  projectava-se agora no azul acinzentado do xisto das lajes da cozinha e uma réstia de sol  vinha poisar na travessa de esmalte em que dois peixinhos, calmos e tranquilos mediam o tempo, parado num naco de pão com queijo, amarelado, a lembrar o azeite que o criou e o pimento que lhe deu o travo da força e da vontade daquela gente, expressa na dureza das fragas e na macieza da lã dos rebanhos.
      A Tonica mordiscou uns cibos, enquanto arregaçava as mangas e virava o avental; atou um lenço de merino à cabeça que lhe tinha dado a Ermelinda Geadas por alma do homem, que já lá vai, e bem novo, coitado. Ainda se lembrava bem: «Andávamos a acartar lenha paro o palheiro para mudar as caminhas dos animais, e vai o pobrezinho, aquilo foi coisa que le dou, ficou-se! e ficou-se assim c´mão passarinho». E encolhia os ombros no conformismo de aceitar o inevitável.  Do que agora se havia de lembrar! O que lá vai, lá vai! E agora, afastando os pés pequeninos escondidos em meias de algodão comprado na Blisanda, que não era nada careira, p´ra vista dos outros… e metia as mãos nos bolsos, dirigindo-se à loje que as suas pitinhas ainda estavam çarradas, coitadinhas.
      Gemia a porta nos gonzos, a Tonica levantava as galinhas, apertando-lhes as asas entre o polegar e os dedos cerrados, e aproximava o animal com carinho, auscultando atentamente os interiores da galinha: o dedo médio, avezado a estas cerimónias, perscrutava , tentando encontrar algo , que pelo toque, se assemelhasse a um ovo. Era a sua galinha pedrês; tinha ovo e, como tal, ficaria ali dentro, não fosse deixar o dito, em poiso alheio. Agora as galinhas cacarejantes, em alegre algaraviada,  corriam os cantos da rua ou passeavam tranquilamente, para quê mudar o ritmo das coisa? E depenicavam ora aqui, ora ali, buscando alguma migalha que garoto apressado teria deixado ficar,  entre uma dentada e uma fala pontual e oportuna, inocente, nas pedras da calçada.
      Já  o sol tinha varrido os poiais da rua e as mulheres já tinham arrumado a cesta da meia e fechado os moldes, também eles provenientes de qualquer  troca,  de uma pinga de azeite ou, quem sabe, alguma cesta de batatas ou caldo de couves. Era a hora de fazer a ceia para os homens que andavam por lá, a mourejar; A Tonica, olhando o céu através dos buracos no telhado, para saber do avançar do tempo, inquieta, ainda permanecia sentada num banco, em frente à francela, de mãos enterradas na coalhada do queijo,  branquinho, redondinho, a lembrar a lua! Já o aro tinha sido apertado mais que uma vez e o soro ainda escorria pelos buracos. «Ainda tinha que suar». A Tonica gostava de deixar os queijos bem espremidos, ó menos o seu homem ia dormir no bardo, mas fosse como fosse, estava-se a demorar… Agora sim, já  sentia a coalhada a enrijar. Cansada da posição e dada a impaciência, a Tonica alongava as ancas e descruzava as pernas, dando outro ritmo ao trabalho.
      A tarde vinha-se aproximando, e não havia sinais do seu Tonico... os gatos, ronceiros, iam subindo as escadas, as portas das lojes iam-se fazendo ouvir para os machos entrarem, agora aliviados das cargas transportadas, as galinhas, naturalmente, subiam para o poleiro, umas atrás das outras e os queijos, tenros e alvos de neve, iriam ficar assim, ainda protegidos em tiras de algodão branco, sem cor,  que iriam ser mudadas e lavadas tantas vezes quantas o asseio e os brios de mulher prezada o desejassem.
      A Tonica não estava bem… sentia um aperto no peito, parece que o coração se lhe tinha gelado…
      Expostos em larga tábua de madeira, suspensa dos caibros do telhado, lá estavam eles, aguardando o destino, ou para o gasto da casa, ou para o cesto do queijeiro. Exposto, tinha ficado Nero,  jazendo, esventrado, junto de um ribeiro, o fiel e heróico guardador de rebanhos, conhecido nas redondezas  como o maior e o mais destemido cão!
      E lá estava o gato preto, com olhos de mau agoiro à espreita da má notícia.

Arinda Andrés
Retratos da minha infância

Bibe Azul

EU TIVE UM BIBE AZUL
Eu tive um bibe azul
Com peixes e ondas do mar.
Dos laços, rendas e tule,
Fiz sonhos de embalar!


Eu tive um bibe azul,
Feito de algodão fino.
Os folhos eram o Sul,
O Norte, o meu destino.


Eu tive um bibe azul,
Pano branco, fino e duro.
E de bainhas de palmo
Amor bebi, doce salmo!

Eu tive um bibe azul
Com bolsos de arrecadar,
Mãos cheias de ternura,               
Histórias de encantar!

Eu tive um bibe azul,
Cosido de pontos sem nó.
Deixai que o vento murmure
Que o mundo me faz dó.

Eu tive um bibe azul,
Feito em noites de luar.
Guardei-o em velho baú,
Deitei as ondas ao mar.

Deitei as ondas ao mar,
Em manhã de neblina. 
E à noite, ao luar,
Chorei o meu bibe de menina.

(Ó minha Mãe, minha Mãe!
Que doce o teu olhar!...
Não há no mundo  outro bem,
Que por teu nome chamar)
………………………….
O meu bibe,
Que era  azul,
Com laços e rendas de tule,
Ofereceu-mo a minha avó.      

Cheirava a rosas,
Violetas e jasmim,
Colhidos de manhã,
No meu jardim.
Para o proteger do pó,
Guardei-o, com carinho,
 Em saquinho de cetim.


Arinda Andrés
Retratos da minha infância

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Lá vai pedrinha!

Lá vai pedrinha!...Lá vai pedrinha …!

      O sol lambia as ourelas de Casassós; os cães, embasbacados de uma tarde de calor, estendiam as patas para desentorpecer o corpo e os músculos, e olhavam à volta, à espera de gato desacautelado; em pinceladas, o verde e o vermelho refulgiam na negrura dos montes a desenharem-se no azul do céu, alto e indiferente  às aflições da Lurdes Leira, que, num dia quente e abafado, de cabelos despenteados, e de lenço agarrado na mão, a acompanhar as ondas da sua arrelia destemperada, de avental a escorregar pela barriga, disfarçando a gordura ou a magreza, que  o povo fala de tudo, os pés enfiados em chinelas ou chanatas, de biqueira arrebitada, dado o uso, chalotava assim atrás do Alfredo Monelho, o seu homem : «Não, homem, que vais a fazer à taberna ? perdeste lá alguma coisa? olha que dar, ninguém te dá lá nada. Se ao menos fosse ali à do Ti Pedreiro, entravas, bubias um copo…olha, ninguém to estranhava, agora para ali… vem para casa, homem de Deus! não vou sem ti ;amanhê temos que ir cavar os feijões e limpar uma parva. Não vou sem ti! » Ao que o marido, impaciente, respondeu: «fai como quiseres; agora vou até às eiras». E ia, ia mesmo jogar, nem tinha cerrado olho durante a noite.
      E enquanto a Lurdes çarandava na horta de um lado para o outro que nem uma borboleta, ele, nem olhava para o arado, sempre com aquela ideia fixa na cabeça, de como havia de dar o troco, bem dado, ao D. Plim, que na tarde de ontem o havia ali envergonhado a jogar o fito; a ele, o melhor ali da freguesia; e os do Peredo a ver!  «Olhe que vossemecê até bota o arado para fora dos regos!…», dizia-lhe o garoto mais novo e já espigadote,  a entender de lavradio, mas sobretudo, a querer agradar ao pai. Não, desse o mar por onde desse, tinha que lhe dar a desforra!
      E, enquanto acanchava para a taberna daTia Arminda, onde os grandes se despicavam, na sua cabeça passavam as imagens da última estratégia a adoptar para derrotar o outro. E com tanta atenção refazia o esquema e montava as peças, que até se ia botando contra as vacas da boiada, não fora o boieiro a berrar ao animal que vinha na sua marcha lenta e certeira: «P´ra li Preta! Não tens olhos? Dou-te cabo dos cornos, se não vês adonde pões os pés!». E a vaca, atenta e obediente, lá se desviava de quem não se desviava de nada, tal era a obstinação de mostrar que ele ainda era o mesmo, pensando apenas em provar, e bem rápido, que ninguém deitava a pedra como ele; ou já se esqueceram? No Santo Apolinário, quem, como ele, lançava a malha?  stá bem, está! E os pés, de tanta pressa levarem, nem pisavam as pedras do chão; até voavam! E lá estavam os mesmos… por instantes, sentiu-se vacilar. Tinha que ser! Para a frente! Então que homem era ele? Ai… parece que as pernas lhe tremiam. Cabeça levantada, era um homem, ou num era…já lá estava o Bailarote, a quem já tinha ganho muitas rodadas de vinho, se le começava a abrir as fuças, inda estava ali para le dar outra! Estava –lhe cá c ´uma destas! E atirava o chapéu para o cimo da cabeça, a mostrar a quem quer que fosse, que não tinha arceio de nada. Metido numas calças de cotim, já bem chapoteadas, era um afolar, afolar até à taberna. Foi lá direitinho! já a levava bem fisgada! e daquela não arredava pé.
      Circunspecto, a olhar por baixo do chapéu de palha, o D.Plim pensava, ponderadamente e num esforço de fazer cerrar os olhos  e os dentes. Ele   agarrou a malha, assim a passá-la por entre os dedos, para se certificar de todas as suas formas, a confirmar que a conhecia bem. Era assim mesmo, adivinhava-lhe todas as asperezas, sim senhor, tal qual ele a tinha visto em sonhos, enquanto a mulher , cansada de pôr a rodriga nos feijões, dormia um sono tão pesado que, dizia ela, se lhe passasse por cima as arrodas de um carro, não dava conta; e os dedos fincava-os na malha, atentamente, quase a ouvia, à pedra; tinha ali um pontinho saliente, era lá que o indicador se ia fixar, enquanto os outros faziam balanço.E….Estava na hora. Direito, bem direito, os pés um pouco afastados  à procura de equilíbrio. Onde estava o marco? Ali! Era aquele; sabia todos os movimentos de cor; tinha-os ensaiado tantas vezes, na sua cabeça; e de corpo inclinado, ainda agarrado à malha, mas com receio de perder aquele momento… deu um pequeno solavanco e... O corpo fez o balanço certinho e preciso! e... zás! Soberano, ergueu-se, majestosamente, desenhando-se , superiormente, aquela figura, alta, robusta e poderosa no largo das Eiras! Todo- poderoso ,atirou-a ! Soltou os dedos, abriu a mão,  alargou os olhos pelo espaço que pretendia dominar e  inclinava agora o corpo , os braços abertos ao sol, como se ele e a pedra fossem um só, e ela a subir, a subir nos seus olhos;  ela a voltear-se no ar! e ele a inclinar-se também...Linda! E  a babar-se de regozijo, agora de barriga espetada para a frente, a cabeça para trás, estendia um sorriso aberto, contemplativo.  Ali no ponto certinho, um Senhor! a vê-la dançar , enquanto os seus olhos,  acompanhavam a pedra, ia largando, em surdina, palavras que só eles os dois compreendiam: «lá vai pedrinha!… lá vai pedrinha!…. »Divinamente! Maravilha! a pedra a bater ali, mesmo!!
     E  uma revoada de palmas ecoou em estrondo na tarde ansiosa e tensa de promessas esquecidas.
      Agora o vinho, em rodadas, fazia despejar os copos, num vaivém de represálias e rixas adiadas.


Arinda Andrés
Retratos da minha infância

Homenagem


Homenagem ao meu Pai,



de quem recebi o amor e o respeito  pela verdade
e pela beleza das coisas e dos seres:
a terra, a família e o trabalho.



 “… Queres que te conte…
 Oh!... Eu tinha tantas coisas para contar!… Infelizes, aqueles que nada têm para contar!… “



            “Olha!… escreve sobre a nossa terra!
             O nascer do sol! É tão bonito o nascer do sol na nossa terra!”

            “Eu gostava muito do campo! Era feliz só de ouvir os passarinhos, por essas ladeiras abaixo!
             Sem me poder mexer, há tantos e tantos anos, meu Deus! Só por milagre! Eu ia para o campo, nem que fosse só por ver e ouvir  e respirar aquela vida da natureza!
              O amanhecer, no campo, é um verdadeiro milagre!
              Aquilo era uma alegria! Um lindo quadro bucólico, digno de ser registado!”


             É bonito o nascer do Sol na minha terra!


               Magnífico!

       Na Primavera, acorda em alvoradas de luz morna, de sumptuosos raios doirados em florescentes clarões matinais, faiscantes de brilho e esplendor, estendendo-se pelos montes e vales, até refulgir nas pedras das casas, em promessas de paz celestial!
            Depois, vai-se derramando pelas encostas do Poio, demora-se nas hortinhas de Lameiras e da Ferraria,  em ribeiros de água fresca a borbulhar de vida e saúde, brinca com algum rebentinho que veio antes do tempo, surpreendendo o lavrador, de costas vergadas sobre o arado, e espraia-se!... em demoradas manhãs de portas e janelas escancaradas a beber a fonte da vida, em casas de xisto, de paredes cinzentas e austeras de hábitos e tradições.
          De Verão, a desfazer-se em fiozinhos de algodão, em céu azul e suave, ou cinzento, escuro e tenebroso, no Inverno; ou até no Outono, de indiferentes e melancólicas   nuvens, em  céu duvidoso e taciturno, de dias sombrios, é sempre belo o nascer do sol na minha terra!

                               Estava tão bonito o campo!
                              Eram dias de calor intenso! As ruas, ainda no sossego de tardes abafadas, despertavam dessa letargia ao som dos  cascos  atordoadores das bestas, nas pedras da calçada; chapéus de palha, doirada ao sol, de abas largas e redondas, ondeavam serenamente por entre a folhagem e o arvoredo, nas hortas vizinhas.
                               O Valcovo vicejava  no chão húmido da rega, em lentos e arrastados caldeiros de nora,  tantarolando, na doce e tranquila paz do campo,  ou em mão vezeira de lavrador amadurecido e cansado, de madrugadas mal dormidas. O cheiro, doce e suculento  dos pêssegos, amarelos, de penugem esbranquiçada e dos damascos, espargindo-se, na tarde quente, vinha amaciar o toque amargo das figueiras verdes  e o travo ainda ácido das maçãs, na dureza dos torrões velhinhos, da terra adormecida; mulheres de ancas redondas e generosas, em saias rodadas, largas de volumes e formas, ajoujavam-se, debaixo das videiras pendentes em verdes e sombrias latadas, ou sobre as couves verdes, de folhas largas e abundantes.
                                 As oliveiras, verdes colheitas de lagar, agitavam-se em sombreados, apaziguadores e reconfortantes, enquanto o limoeiro e a madressilva, se conjugavam em odorífera amálgama de perfume benfazejo, combinado com o aroma da laranjeira e da nespereira que, ao longo do ano,  para reverdejarem em saborosos e apetecidos frutos, se desfazem da roupagem, libertando-se  de folhas secas e mortas, exalando um aroma quente e  melífluo, a desafiar o cheiro da rosa  e do lilás ; os pimentos e os tomates, cresciam, carnudos, a rebentar de seiva em alegres e garridos tons de vida, contrastando com as abóboras amarelas e os melões maduros; as alfaces, tenras e viçosas, farfalhavam, de verdura, a terra fresca; e as cebolas, impertinentes de porte e de sabor, erguiam-se altivas, no meio de pezinhos de salsa, tão humildes, quão intensos de aroma e de paladar!
                               O trigo e a cevada amontoavam-se em medas nas eiras de lajes cinzentas desvanecidas em leves e suaves amarelos de palha, ou de alguns grãos de espiga aberta e mal triturada , acabando em bico de  galinha ágil e adestra a estas lides. À volta dos muros, os ceifeiros  cirandavam , de camisas coladas ao corpo, e lenço vermelho atado ao pescoço.
                               Em redor dos prados, havia grandes amendoais, dobrados ao calor pesado do mês de Agosto, e as oliveiras  enfeitavam os campos, secos, de mil folhinhas, pequeninas azeitonas, etéreas, quase, a lembrar o amarelo, doirado  do azeite e o sol, qual fogueira de luz, em  plúmbeo céu, esbranquiçado contudo, brincava com as pedras cinzentas dos muros, redobrando-se em brilhos de paz e  de tranquilidade.
                            A noite fechava-se no silêncio e na paz dos campos, e o último rego  esgotava-se na procura do único bem precioso, a terra! que havia de repousar, fresca e revigorada, em noites silenciosas, de brumas sussurrantes, borbulhando de fertilidade e de seiva, nos regos e  nos ribeiros de águas frescas, puras e cristalinas, onde a manhã se demorava, enquanto o sol subia, resplandecente de paz e felicidade, pelos cabeços dos montes. 


…e a angústia da partida assombrava a paz edílica da terra…

Estava realmente bonito o campo, naquele dia!


Arinda Andrés
Retratos da minha infância