Lá vai pedrinha!...Lá vai pedrinha …!
O sol lambia as ourelas de Casassós; os cães, embasbacados de uma tarde de calor, estendiam as patas para desentorpecer o corpo e os músculos, e olhavam à volta, à espera de gato desacautelado; em pinceladas, o verde e o vermelho refulgiam na negrura dos montes a desenharem-se no azul do céu, alto e indiferente às aflições da Lurdes Leira, que, num dia quente e abafado, de cabelos despenteados, e de lenço agarrado na mão, a acompanhar as ondas da sua arrelia destemperada, de avental a escorregar pela barriga, disfarçando a gordura ou a magreza, que o povo fala de tudo, os pés enfiados em chinelas ou chanatas, de biqueira arrebitada, dado o uso, chalotava assim atrás do Alfredo Monelho, o seu homem : «Não, homem, que vais a fazer à taberna ? perdeste lá alguma coisa? olha que dar, ninguém te dá lá nada. Se ao menos fosse ali à do Ti Pedreiro, entravas, bubias um copo…olha, ninguém to estranhava, agora para ali… vem para casa, homem de Deus! não vou sem ti ;amanhê temos que ir cavar os feijões e limpar uma parva. Não vou sem ti! » Ao que o marido, impaciente, respondeu: «fai como quiseres; agora vou até às eiras». E ia, ia mesmo jogar, nem tinha cerrado olho durante a noite.
E enquanto a Lurdes çarandava na horta de um lado para o outro que nem uma borboleta, ele, nem olhava para o arado, sempre com aquela ideia fixa na cabeça, de como havia de dar o troco, bem dado, ao D. Plim, que na tarde de ontem o havia ali envergonhado a jogar o fito; a ele, o melhor ali da freguesia; e os do Peredo a ver! «Olhe que vossemecê até bota o arado para fora dos regos!…», dizia-lhe o garoto mais novo e já espigadote, a entender de lavradio, mas sobretudo, a querer agradar ao pai. Não, desse o mar por onde desse, tinha que lhe dar a desforra!
E, enquanto acanchava para a taberna daTia Arminda, onde os grandes se despicavam, na sua cabeça passavam as imagens da última estratégia a adoptar para derrotar o outro. E com tanta atenção refazia o esquema e montava as peças, que até se ia botando contra as vacas da boiada, não fora o boieiro a berrar ao animal que vinha na sua marcha lenta e certeira: «P´ra li Preta! Não tens olhos? Dou-te cabo dos cornos, se não vês adonde pões os pés!». E a vaca, atenta e obediente, lá se desviava de quem não se desviava de nada, tal era a obstinação de mostrar que ele ainda era o mesmo, pensando apenas em provar, e bem rápido, que ninguém deitava a pedra como ele; ou já se esqueceram? No Santo Apolinário, quem, como ele, lançava a malha? stá bem, está! E os pés, de tanta pressa levarem, nem pisavam as pedras do chão; até voavam! E lá estavam os mesmos… por instantes, sentiu-se vacilar. Tinha que ser! Para a frente! Então que homem era ele? Ai… parece que as pernas lhe tremiam. Cabeça levantada, era um homem, ou num era…já lá estava o Bailarote, a quem já tinha ganho muitas rodadas de vinho, se le começava a abrir as fuças, inda estava ali para le dar outra! Estava –lhe cá c ´uma destas! E atirava o chapéu para o cimo da cabeça, a mostrar a quem quer que fosse, que não tinha arceio de nada. Metido numas calças de cotim, já bem chapoteadas, era um afolar, afolar até à taberna. Foi lá direitinho! já a levava bem fisgada! e daquela não arredava pé.
Circunspecto, a olhar por baixo do chapéu de palha, o D.Plim pensava, ponderadamente e num esforço de fazer cerrar os olhos e os dentes. Ele agarrou a malha, assim a passá-la por entre os dedos, para se certificar de todas as suas formas, a confirmar que a conhecia bem. Era assim mesmo, adivinhava-lhe todas as asperezas, sim senhor, tal qual ele a tinha visto em sonhos, enquanto a mulher , cansada de pôr a rodriga nos feijões, dormia um sono tão pesado que, dizia ela, se lhe passasse por cima as arrodas de um carro, não dava conta; e os dedos fincava-os na malha, atentamente, quase a ouvia, à pedra; tinha ali um pontinho saliente, era lá que o indicador se ia fixar, enquanto os outros faziam balanço.E….Estava na hora. Direito, bem direito, os pés um pouco afastados à procura de equilíbrio. Onde estava o marco? Ali! Era aquele; sabia todos os movimentos de cor; tinha-os ensaiado tantas vezes, na sua cabeça; e de corpo inclinado, ainda agarrado à malha, mas com receio de perder aquele momento… deu um pequeno solavanco e... O corpo fez o balanço certinho e preciso! e... zás! Soberano, ergueu-se, majestosamente, desenhando-se , superiormente, aquela figura, alta, robusta e poderosa no largo das Eiras! Todo- poderoso ,atirou-a ! Soltou os dedos, abriu a mão, alargou os olhos pelo espaço que pretendia dominar e inclinava agora o corpo , os braços abertos ao sol, como se ele e a pedra fossem um só, e ela a subir, a subir nos seus olhos; ela a voltear-se no ar! e ele a inclinar-se também...Linda! E a babar-se de regozijo, agora de barriga espetada para a frente, a cabeça para trás, estendia um sorriso aberto, contemplativo. Ali no ponto certinho, um Senhor! a vê-la dançar , enquanto os seus olhos, acompanhavam a pedra, ia largando, em surdina, palavras que só eles os dois compreendiam: «lá vai pedrinha!… lá vai pedrinha!…. »Divinamente! Maravilha! a pedra a bater ali, mesmo!!
E uma revoada de palmas ecoou em estrondo na tarde ansiosa e tensa de promessas esquecidas.
Agora o vinho, em rodadas, fazia despejar os copos, num vaivém de represálias e rixas adiadas.
Arinda Andrés
Retratos da minha infância
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