sábado, 2 de junho de 2012

A Tonica

     Ainda a alvorada, cinzenta e fria,  bem cerrada ao sol e à vida se escondia nos montes, e já a Tonica  trazia  as panelas  cheias de leite, ainda a cheirar à ordenha da manhã, misturada ao cheiro das urzes do monte e ao bafo dos borreguinhos.
      Tinha ido ao pasto, que as ovelhas e o Toninho, andavam em errância tão demorada, quanto os lameiros e os campos fartassem as ovelhas. Andava à vontade, que o Nero, o melhor cão que por ali havia, metia respeitinho! e medo! Olha que o lobo, dizem que já comeu e matou um ror deles…!
      Depois chegava a casa, a Tonica morava numa casa cheia de sonhos , arrumadinhos em cada púcaro, ardilosamente esfregado com areia, e muito pulso firme de trabalho e de vontade de ser alguém na vida; ao leite, já na caldeira, deitava-lhe o coalho para se transformar em coalhada. E ali estava, sobre as lajes da cozinha, tapada com um pano branco, mais branco que a neve, que a Tonica era muito limpa e prezada e  ninguém duvidava disso; a panela do leite estava  no  meio da cozinha; ao lado direito,  bem escarqueijado, o almário das panelas de ferro; todas alinhadas, numa cumplicidade estreita com a dona da casa e, mudas da atenção  a que estavam votadas, perscrutavam todos os movimentos daquele espaço tão pequenino ,mas tão aconchegante, dada a harmonia em que as coisa habitavam!  A sombra dos cântaros  de barro e de lata,  projectava-se agora no azul acinzentado do xisto das lajes da cozinha e uma réstia de sol  vinha poisar na travessa de esmalte em que dois peixinhos, calmos e tranquilos mediam o tempo, parado num naco de pão com queijo, amarelado, a lembrar o azeite que o criou e o pimento que lhe deu o travo da força e da vontade daquela gente, expressa na dureza das fragas e na macieza da lã dos rebanhos.
      A Tonica mordiscou uns cibos, enquanto arregaçava as mangas e virava o avental; atou um lenço de merino à cabeça que lhe tinha dado a Ermelinda Geadas por alma do homem, que já lá vai, e bem novo, coitado. Ainda se lembrava bem: «Andávamos a acartar lenha paro o palheiro para mudar as caminhas dos animais, e vai o pobrezinho, aquilo foi coisa que le dou, ficou-se! e ficou-se assim c´mão passarinho». E encolhia os ombros no conformismo de aceitar o inevitável.  Do que agora se havia de lembrar! O que lá vai, lá vai! E agora, afastando os pés pequeninos escondidos em meias de algodão comprado na Blisanda, que não era nada careira, p´ra vista dos outros… e metia as mãos nos bolsos, dirigindo-se à loje que as suas pitinhas ainda estavam çarradas, coitadinhas.
      Gemia a porta nos gonzos, a Tonica levantava as galinhas, apertando-lhes as asas entre o polegar e os dedos cerrados, e aproximava o animal com carinho, auscultando atentamente os interiores da galinha: o dedo médio, avezado a estas cerimónias, perscrutava , tentando encontrar algo , que pelo toque, se assemelhasse a um ovo. Era a sua galinha pedrês; tinha ovo e, como tal, ficaria ali dentro, não fosse deixar o dito, em poiso alheio. Agora as galinhas cacarejantes, em alegre algaraviada,  corriam os cantos da rua ou passeavam tranquilamente, para quê mudar o ritmo das coisa? E depenicavam ora aqui, ora ali, buscando alguma migalha que garoto apressado teria deixado ficar,  entre uma dentada e uma fala pontual e oportuna, inocente, nas pedras da calçada.
      Já  o sol tinha varrido os poiais da rua e as mulheres já tinham arrumado a cesta da meia e fechado os moldes, também eles provenientes de qualquer  troca,  de uma pinga de azeite ou, quem sabe, alguma cesta de batatas ou caldo de couves. Era a hora de fazer a ceia para os homens que andavam por lá, a mourejar; A Tonica, olhando o céu através dos buracos no telhado, para saber do avançar do tempo, inquieta, ainda permanecia sentada num banco, em frente à francela, de mãos enterradas na coalhada do queijo,  branquinho, redondinho, a lembrar a lua! Já o aro tinha sido apertado mais que uma vez e o soro ainda escorria pelos buracos. «Ainda tinha que suar». A Tonica gostava de deixar os queijos bem espremidos, ó menos o seu homem ia dormir no bardo, mas fosse como fosse, estava-se a demorar… Agora sim, já  sentia a coalhada a enrijar. Cansada da posição e dada a impaciência, a Tonica alongava as ancas e descruzava as pernas, dando outro ritmo ao trabalho.
      A tarde vinha-se aproximando, e não havia sinais do seu Tonico... os gatos, ronceiros, iam subindo as escadas, as portas das lojes iam-se fazendo ouvir para os machos entrarem, agora aliviados das cargas transportadas, as galinhas, naturalmente, subiam para o poleiro, umas atrás das outras e os queijos, tenros e alvos de neve, iriam ficar assim, ainda protegidos em tiras de algodão branco, sem cor,  que iriam ser mudadas e lavadas tantas vezes quantas o asseio e os brios de mulher prezada o desejassem.
      A Tonica não estava bem… sentia um aperto no peito, parece que o coração se lhe tinha gelado…
      Expostos em larga tábua de madeira, suspensa dos caibros do telhado, lá estavam eles, aguardando o destino, ou para o gasto da casa, ou para o cesto do queijeiro. Exposto, tinha ficado Nero,  jazendo, esventrado, junto de um ribeiro, o fiel e heróico guardador de rebanhos, conhecido nas redondezas  como o maior e o mais destemido cão!
      E lá estava o gato preto, com olhos de mau agoiro à espreita da má notícia.

Arinda Andrés
Retratos da minha infância

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