domingo, 3 de junho de 2012

Tia Maria da Natividade

                 
A Tia Maria da Natividade, de cantarinha de barro empoleirada no alto da cabeça, ou enfiada no braço, não era muito alta, mas a sua figura de mulher ágil, a cara miudinha, numa cabeça apertada num piruco, emoldurada em meigo e claro olhar, a boca de lábios finos, aberta em palavras de generosidade e alegria, faziam dela uma grande pessoa, diferente das outras, daí eu, imaginá-la, sempre, como alta e grande mulher!
Ocupava-se das ovelhas, do queijo e do leite, os mais apreciados entre todos os da aldeia, enchendo de brios de trabalho e fartura as tábuas de coalhadas brancas enluaradas, a secar em casca de manteiga apimentada e as francelas a escorrer de soro e de tenros requeijões, numa terra de rebanhos e de pastores. Estava casada com o João Borregão, um homem sem pressas, sempre com um sorriso arreganhado no rosto redondo de bondade e de satisfação; nascido e criado entre as ovelhas, e a liberdade dos montes, e recebido, da sua companhia, a paz e a bondade dos borregos, era um incansável protector e apaziguador em quezílias de pastores, para dividir alguma leira ou pedaço de lameiro, pago a bom preço; era sempre tido e achado em tempo de tomar decisões acertadas e pacificadoras; para ele estava tudo bem, e para as suas ovelhas, qualquer nesga de carvalha, ou folhareca de rebentação, tenra e viçosa, chegavam; tinha que aturar os que assim não pensavam, mas tido como respeitado e respeitador, não lhe era difícil acalmar ânimos de pequenas rixas.
Viviam assim uma vida simples, sem grandes canseiras e cuidados, ocupando-se apenas do pequeno rebanho e dos animais, em plena serra, numa casinha simples e modesta, onde o galo cantava e a terra florescia em fartas sementeiras e abençoadas colheitas.
A esse tempo, um rico comerciante, levado pela ganância, e para conseguir bons lucros, mandou comprar e cercar os melhores pastos da sua terra e das redondezas, limitando ao poder e à ostentação as suas ovelhas e pastores. Toda a gente, surpreendida por tanta ambição, ficou pasmada perante o acto, de tão desmedido que era, mas ninguém disse nada, de susto e de receios! Entretanto, a Tia Maria da Natividade e o João Borregão viviam o seu dia-a-dia, felizes e contentes, longe do povoado, na serra, vendo correr a águas nos ribeiros e ouvindo o cantar dos passarinhos, contentando-se com o que Deus lhe deu.
Uma cantarinha de barro, oferecida por seu pai, o velho oleiro, era um dos preciosos bens da Tia Maria da Natividade; passou-lhe naquele utensílio rude e vulgar, tão perfeito na forma como no fim a que se destinava, todo o amor à terra e às coisas que dela naturalmente brotavam; e a tia Maria da Natividade sempre pensou que tinha, com aquela dádiva, recebido a obrigação de lhe dar uso e proveito, e fosse para onde fosse, tinha que se fazer acompanhar daquela cantarinha; já as outras mulheres andavam cansadas e estafadas de tanta água acarretar, e ela, calmamente, ao passar por esta ou por aquela fonte, trazia, de imediato, aquilo que precisava, mas também, se se deparava com alguém, em tempos de calor abrasivo, de imediato se prontificava a dar de beber a quem tinha sede, aproveitando, também, para trocar alguma palavra amiga, sem as gastar desnecessariamente, nunca se esquecendo de dar uso ao precioso presente e do que para ela significava. E os garotos que lhe andavam por perto, diziam, e da boca das crianças é que sai a verdade, e diziam todos eles, que a água da cantarinha da Ti Maria, era muito boa, sabia muito bem! «A água da Ti Maria é que é boa! Até cura as maleitas dos raparigos! É! Porque vai- a buscar a Sant´Oplinairo! Anda que nem uma barboreta! E tudo o que faz, pode-se ver!
Era uma manhã bonita e serena! O céu estava azul e os passarinhos, em alegres chilreios, cruzavam os ares em esfusiante algaraviada, a derramar-se em trinados de alegria e contemplação, e a tia Maria da Natividade, qual Primavera florida, de blusa enfeitada e chapéu na cabeça, apertado debaixo do queixo, vinha para casa, a cavalo em seu manso e humilde burriquito ali na aldeia, onde o queijeiro se desfazia em apuros de palavreado para levar os rendimentos dos rebanhos, ao melhor preço que lhe conviesse, e as mulheres, de mãos debaixo dos braços, afastaram-se de imediato, cochichando de curiosidade ou para tomar o pulso à questão; é que, vendo chegar a tia Maria da Natividade, recearam pelo seu afamado perfeccionismo.
Apenas preocupada consigo e com os seus, preparava-se para entrar em casa, onde a ordem e a limpeza varriam com serenidade e alegria, todos os contratempos e desentendimentos, mas o cheiro e a visão daquela angélica figura, com os seus queijos e requeijões a branquejar pelos buraquinhos de alva toalha de linho, atraíram a curiosidade de tão espertalhão negociante, que, também se preparou, de imediato, para ver e apreciar o trabalho daquela mulher, tão simples e arredada do seu mundo de dinheiro e ganância.
Era um homem poderoso e exigiu, de imediato, que todos os queijos lhe fossem confiscados, de tão apaixonado ficou por aquele precioso manjar; o povo estava pasmado e nem queria acreditar, a Tia Maria da Natividade, regressou a casa, triste e receosa pelo seu precioso trabalho; o tempo foi passando, e não havia novidades; até que um dia, o sábio negociante, determinou, a custo de muito dinheiro, que todo o queijo da Tia Maria lhe pertencesse, doravante!
Ficou triste e apoquentado o Ti João! E, vendo chegar a noite, desceu ao povoado, por entre as sombras das casas, pé aqui, pé ali, apalpando e tacteando, a fim de repor a justiça sobre aquela questão. E dirigiu-se a casa do rico comerciante, uma imponente construção, mas longe de tudo e de todos, isolada do mundo e da vida.
- Senhor, porque sois egoísta e malfeitor, apoderando-vos do que é dos outros? Os nossos queijos e as nossas coisas, são o nosso retrato, por isso o que é nosso, tratamo-lo com amor! O sabor dos nossos produtos deve-se à terra onde pastam, aos lameiros verdejantes, à água que corre nos ribeiros, ao sol que nos guia e ao luar que nos adormece! Nós e as nossas ovelhas, vivemos descansadamente, sem preocupações, apenas do que Deus nos dá!
Então o queijeiro, ganancioso, libertou as ovelhas, para gozarem, livremente das riquezas naturais das nossas terras! Ficando, deste modo, os rebanhos de Urros conhecidos por serem os melhores e mais apreciados, graças aos bons pastos de que se apascentavam, nas nossas terras!

Arinda Andrés
Retratos da minha infância

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